É preciso extinguir o
Grupo de Intervenção Rápida ( G.I.R ) do sistema Prisional Paulista
Tivemos dois curtos períodos democráticos na
história do Brasil. O primeiro, de 1945 a 1964, interrompido por uma nefasta
ditadura militar. A redemocratização, com início em 1985 culminou na atual
Constituição da República de 1988, regime democrático novamente golpeado numa
triste e recente ruptura constitucional. Tais fatos nos mostra que a democracia
brasileira vive e sobrevive em constante ameaça. Precisa ser implementada,
fortalecida, expandida. Jamais desprezada, enfraquecida, apequenada ou
golpeada.
Não é de hoje que inúmeras têm sido as
decisões políticas no melhor interesse de grupos sociais minoritários que nos
fazem questionar se de fato vivenciamos a democracia. A Constituição Federal de
88 em seu artigo 1º nos adverte: vivemos em República que se constitui em
Estado Democrático de Direito. Estaríamos num impasse: se, de fato, não estamos
na ditadura, é certo que a democracia ainda não foi experimentada, não foi
efetivada em sua plenitude. Vivemos numa espécie de pseudodemocracia ou
arremedo democrático.
Em sua incompletude, o Estado de Direito não
ultrapassa as barreiras do cárcere, onde a prisão invariavelmente desencadeia
uma série de violações e supressões de direitos humanos que ferem de morte a
dignidade humana, um dos fundamentos da República.
O Brasil ainda se apresenta como constante
violador de direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição de 88,
especialmente no que concerne ao tratamento destinado às pessoas privadas de
liberdade, num sistemático desrespeito e inobservância das normas previstas na
Lei de Execução Penal (Lei Federal nº 7.210/84) e demais diplomas legais em
prejuízo dos acusados ou condenados.
Se a própria Constituição Federal
Brasileira não é observada e implementada em nosso sistema prisional, tampouco o são as normas supraconstitucionais ou normas de direito internacional,
a exemplo das Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Presos –
criadas em meados do século passado e incorporadas no direito brasileiro –
recentemente atualizadas e apelidadas de Regras de Mandela e que continuam
passando ao largo do sistema prisional. Ademais,
vale lembrar que o Brasil, país-membro e um dos fundadores da ONU vem, ao longo
dos anos, ratificando importantes instrumentos e Tratados Internacionais de
Direitos Humanos, dentre os quais a Convenção contra a Tortura e Outros
Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1989.
O que dirá então as Regras de Bangkok criadas
em 2010, as quais ainda permanecem desconhecidas ou ignoradas por parte de
profissionais do direito, sobretudo numa cultura perversamente machista e
punitivista como a existente na sociedade brasileira. Isto porque as Regras de
Bangkok (aclaradoras e complementares às Regras de Mandela) fazem um
indispensável recorte de gênero na questão do encarceramento feminino, fenômeno
que lamentavelmente tem aumentado de forma significativa no Brasil nas últimas
décadas.
O desinteresse político na efetivação de
direitos e garantias é flagrante, a exemplo do estado de São Paulo, onde o
Legislativo permanece omisso na questão da efetiva implantação das Regras de
Mandela (e de Bangkok), mesmo com expressa previsão na Constituição Estadual
que determina: “Art.
143. A legislação penitenciária estadual assegurará o respeito às regras
mínimas da Organização das Nações Unidas para o tratamento de recluso .
Não se olvida que o tratamento
inconstitucional e ilegal comumente dispensado à população carcerária advém do
descaso político não apenas do Legislativo quando se omite na elaboração de
leis garantistas (e, via de regra, aposta na elaboração de leis punitivas), ou
do Executivo ao não optar por políticas públicas (até mesmo na realização de direitos
humanos já consagrados), mas também do próprio Judiciário em que parte
expressiva de seus atores(1) são demasiadamente apáticos à realidade, meros
tecnocratas, quando não, alienados em prejuízo da efetiva concretização dos
direitos humanos mais basilares, sobretudo no cárcere.
Contudo, o presente artigo pretende se
circunscrever ao papel do Legislativo e Executivo no sistema carcerário,
especialmente dentro do estado de São Paulo, sobre o qual pretende jogar luz
nas ações do grupo especializado de agentes penitenciários, o chamado G.I.R.
(Grupo de Intervenção Rápida) que, a despeito deste contexto jurídico-normativo
de proteção aos direitos humanos, desenvolveu-se no início da atual década
dentro do cárcere paulista de modo um tanto natural, isto é, sem alarde e sem
oposição das instituições democráticas. Conforme trataremos adiante, o GIR não
tem embasamento legal, tampouco constitucional e sequer encontra
correspondência no rol taxativo do artigo 144 da CF/88 que trata da segurança
pública, contrariando também dispositivos de Convenções e Tratados
Internacionais incorporados ao sistema jurídico brasileiro.
A Assembleia Legislativa do Estado de SP vem
descumprindo o seu próprio mandamento constitucional acerca da criação de
mecanismos para que as Regras Mínimas da ONU no tratamento de presos (e de
presas – interpretação extensiva) sejam respeitadas, garantidas.
Já o governo do Estado de São Paulo, por
meio da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) resolveu,
deliberadamente, preencher tais “lacunas” – como se lhe fosse permitido – de
modo arbitrário e ilegal ao editar resoluções que possibilitam, direta ou indiretamente,
a violação às Regras da ONU e estabelecem normas em total dissonância com o
ordenamento jurídico. Aqui abre-se um parênteses para a citação de dois
exemplos:
01-
a Resolução SAP nº 69/2004 que instituiu o GIR, grupo de segurança penitenciária
que tem suas ações pautadas pelo uso escalonado da força (contrariando
literalmente o estabelecido nas Regras de Mandela – regra 82.1 – na qual o uso
da força é medida de exceção). Além de que o emprego da palavra “escalonado” é
incabível porque remete à ideia de ilimitado, infinito e exatamente por isso
flerta com práticas criminosas, extremamente autoritárias e repulsivas como o
caso da tortura e outras formas de tratamento desumano, cruel ou degradante.
02
- a Resolução SAP nº 144/10 que criou faltas disciplinares de natureza leve e
de natureza média aos encarcerados, violando assim o princípio da legalidade
(compete à legislação estadual a previsão das faltas disciplinares médias,
leves e respectivas sanções), além de que direito penitenciário é matéria de
competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito
Federal.(2) É inadmissível que simples regimento interno criado pela SAP rasgue
a Lei de Execução Penal e passe por cima de dispositivos constitucionais.
Retomaremos o assunto mais adiante.
Tais exemplos dão certa medida de como o
Legislativo e o Executivo tratam a questão carcerária, numa aparente
negligência que nada mais é do que opção de política pública, num verdadeiro
assentimento de interesses ou vontades escusas entre os Poderes do Estado pois,
mesmo havendo todo um regramento jurídico de direitos humanos basilares à
população carcerária, as piores escolhas são tomadas, seja na omissão, seja na
produção de mecanismos anulatórios desses mesmos direitos pelo próprio Estado como
o caso da criação do GIR.
Por primeiro, é preciso que se compreenda que
o cárcere não pode ser utilizado como local de vingança pessoal pelas chagas
sociais, como um catalisador de agentes penitenciários sádicos, terra sem lei e
regida por regras próprias. No atual momento civilizatório deveria ser um
escândalo a prática de tortura e de tratamento desumano para todo e qualquer
indivíduo. Além do servidor infrator, o sistema prisional é agente facilitador
para a atuação ilegal e criminosa desses agentes penitenciários porque chancela
o uso desmedido da força na imposição de “ordem e disciplina”, de sanções
indevidas sem apuração das eventuais faltas cometidas, sem direito de defesa,
sem treinamento adequado, sem fiscalização e responsabilização de seus agentes.
E é exatamente nesse contexto de violações de
direitos que se insere o GIR no sistema prisional paulista, com início de
operação no ano de 2002 no CDP de Sorocaba, expandindo-se posteriormente nas
penitenciárias e demais Centros de Detenção Provisória (CDP´s) do estado. O GIR
é uma tropa de segurança que muito se assemelha à uma força policial interna
corporis da SAP, isto é, um grupo de agentes de segurança penitenciária com
atuação exclusiva nas unidades prisionais, também conhecido por “mini tropa de
choque” ou “choquinho”, em clara referência à Tropa de Choque da Polícia
Militar do Estado de São Paulo.
A
ideia de criação do GIR surgiu em 2001 e segundo um de seus idealizadores, o
advogado Márcio Coutinho, à época diretor do CDP de Sorocaba, se deu em virtude da “necessidade de acompanhar as mudanças nos perfis
dos presos, que estavam mais audaciosos e problemáticos”. Outra justificativa
apontada foi o demasiado tempo de resposta da Tropa de Choque da PM, que se
sujeitava a comando diverso da SAP, bem como a necessidade de “pronta resposta
em situações de risco ou início de rebeliões”. Agentes do GIR passaram a
receber treinamento militarizado, armamentos e munições não letais.
Evidente que é esperado e desejável agentes
penitenciários capacitados para atuarem em situações de risco ou gravidade a
fim de resguardar e proteger a integridade física e/ou a vida de todos os
envolvidos. Todavia, as ações por eles executadas jamais podem se divorciar dos
postulados da dignidade humana e demais sistema jurídico. E isto não acontece
com um treinamento militarizado que tem a ótica exclusiva de repressão e
combate ao inimigo, em absoluto desprezo e ignorância das normas legais e
supralegais de direitos humanos.
Dois anos de atuação do GIR na total
obscuridade, a SAP publicou a Resolução nº 69/2004 que oficializou as operações
do grupo e enumerou possibilidades de ação dos agentes, tais como revistas em
celas, remoção interna de presos, combate a início de revoltas e tentativas de
fuga (previu-se o uso escalonado da força em toda e qualquer hipótese). Após
cinco anos, nova Resolução foi criada (Resolução SAP nº 155/2009), em reedição
da anterior, e deu origem a CIR (Célula de Intervenção Rápida) – um
desdobramento do GIR que atua com o mesmo modus operandi, com a diferença que a
Célula possui número menor de integrantes que o Grupo.
Apesar do formalismo capenga, o GIR (e a CIR)
continua nas sombras, porém bastante atuante no interior do sistema prisional
paulista. Nos últimos anos, vem ganhando espaço no território nacional numa
escalada repressiva, tendo-se notícia de similar implantação em outros estados
da Federação, como por exemplo no estado de Minas Gerais (criado em 2012,
Resolução SEDS-1266) e Mato Grosso do Sul (GIRVE – em fase de implementação).
O GIR é modelo de segurança ilegal e
inconstitucional, que entra em ação no cárcere paulista nas variadas situações
do cotidiano (mesmo na ausência de rebelião ou de risco efetivo) mediante ordem
da direção do estabelecimento, em contínua violência estatal. A criação do GIR ( Grupo de Intervenção Rápida ) abriu uma
brecha, imperceptível extramuros, para violações de direitos humanos. Agentes
penitenciários atuam como a Tropa de Choque do cárcere (ou pior devido à
invisibilidade de ações, urgentes ou não, necessárias ou não) a qualquer hora
do dia ou da noite, sob qualquer pretexto, no tratamento de presos e presas sem
observância ao regramento jurídico.
Sequer houve base legal para o GIR, instituído
por ato administrativo e em ofensa a dispositivos legais, sem fundamento
jurídico válido de existência. Como se sabe, resolução não é lei. A matéria
aqui tratada é de ato vinculado a lei, inexistindo espaço para
discricionariedade da SAP ou Poder Público. Difícil seria sustentar a
legalidade ou legitimidade do GIR vez que não guarda correspondência alguma com
a legislação brasileira do ponto de vista formal e material, atuando à margem
da lei.
A par do crescimento exponencial da população
carcerária nas duas últimas décadas e da necessidade do Estado
em conter rebeliões, o GIR entrou em cena no sistema prisional sem qualquer
parâmetro legal em notório recrudescimento da opressão estatal em face dos
encarcerados. Em outras palavras, o GIR é a institucionalização da tortura, dos
maus-tratos e do tratamento cruel, desumano e degradante pelo estado de São
Paulo contra presos e presas.
E com isto não se está a afirmar que o GIR é o
único responsável pela violência no sistema prisional paulista, como se fosse
ele a raiz do problema. Evidente que não. Numa abordagem Foucaultiana
discute-se há muito a estreita relação entre prisão e violência e é neste
sentido que a violência institucional do cárcere precede ao GIR, mas é indubitável
que este modelo de segurança penitenciária contribui significativamente com
este terrível cenário ao fomentar violências e agravar sobremaneira violações
de direitos humanos para todos os lados.
De fato, segundo a pesquisadora e socióloga
Camila Nunes Dias , houve um
aumento vertiginoso de rebeliões, ano a ano, nas unidades prisionais paulistas,
o que culminou na megarrebelião do ano de 2001, tudo em virtude do processo de
expansão do PCC no interior do sistema carcerário com início no ano de 1994.
Curioso notar que o surgimento do PCC, nas palavras da ilustre socióloga, teria
ocorrido em virtude “dos escombros do descaso, das arbitrariedades e da
violência institucional que sempre estiveram presentes nas prisões
brasileiras”.
Segundo Camila Dias, em virtude da
publicização do PCC por conta da megarrebelião de 2001, dois foram os efeitos
imediatos ocorridos: o fortalecimento da organização que impulsionou a sua
disseminação mais rapidamente dentro do sistema carcerário e o desencadeamento
de resposta repressiva do Estado – já que publicamente desmoralizado – com a
criação do RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). Assim, conclui que “o ano de
2001 foi um divisor de águas para as políticas na área de segurança pública no
estado”.
Ante tais fatos podemos constatar que, não por
acaso, o GIR também surgiu exatamente nesse mesmo período no sistema prisional
paulista, entre 2001 e 2002, e revelou-se como uma forma de controle
eminentemente violento da população carcerária. Apesar do GIR não se
tratar de regime disciplinar propriamente dito como o RDD, também impõe uma
disciplina terrorista e desumana aos encarcerados.
A invisibilidade das ações do GIR, que ocorrem
à margem da lei e sem qualquer tipo de controle fiscalizatório de seus agentes,
propicia um controle tirânico da população carcerária num círculo vicioso de
constantes ofensas aos direitos humanos, mantendo-se afastada a dignidade
humana aos encarcerados. O GIR tornou-se um componente estratégico para a
transgressão do sistema jurídico protetivo de direitos humanos, a pretexto do
estabelecimento da disciplina e da ordem.
Essa barbárie vez ou outra é noticiada na
mídia tradicional e, deixando de lado as interpretações levianas típicas desses
canais (claro, sem ignorar que são denúncias sujeitas ao processo legal),
constatamos denúncias gravíssimas contra agentes do GIR. Como exemplo :
Vemos denúncias de crimes de tortura
e lesão corporal praticados contra 111 presos durante revista de rotina no
CDP de Taubaté e contra 74 detentos na Penitenciária II de Potim, em 2014. Note-se que a violência teria ocorrido durante simples procedimento de
rotina.
Outros casos noticiados teriam ocorrido
no início de 2016, no presídio de Uberlândia (MG), como o crime de lesão
corporal mediante explosão de granadas, abuso de autoridade e crime de tortura
contra os presos, dessa vez em nome da disciplina. Mais recentemente, esta
outra denúncia num CDP da capital de SP, onde agentes do GIR
teriam torturado mais de 30 presos (provisórios) e feito disparos de
balas de borracha, bombas de gás, uso de spray de pimenta, cassetetes e cães
enfim, todo o arsenal disponível de uso cotidiano do GIR, para agredir e
impingir o terror, além de tratamento desumano, cruel, degradante e aplicação
de sanções ilegais (punições coletivas) aos encarcerados.
Segue trecho da reportagem:
“Tiveram suspensos os direitos aos banhos de
sol, visitas de advogados, parentes, entradas de jumbos (alimentos levados
pelos familiares) e entregas de cartas e remédios controlados. Também relataram
ter as roupas rasgadas e objetos pessoais levados, sendo obrigados a ficarem
nus ou de cuecas, trancafiados em celas superlotadas, sem colchões e energia
elétrica”.
Um olhar mais atento nos mostrará que não se
tratam de casos isolados. Note-se que nenhuma dessas violências tiveram origem
em rebelião (o que em tese “legitimaria” a intervenção do grupo especializado,
mas nunca suas ações criminosas). Mesmo em hipótese de rebelião, evidente que o
uso excessivo da força pelos agentes deve sujeitar-se à punição, bem como toda
a sorte de crimes praticados devem ser apurados e aplicadas as
responsabilizações legais.
Ora se agride ou se tortura para impor
disciplina (que comumente é imposição de uma ordem ilegal), ora para pôr fim à
qualquer discussão como quantidade de comida, conforme última reportagem.
Trata-se de situação abominável que não se deve mais tolerar em pleno século
XXI, num Estado de Direito. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos
proclamada pela ONU em 1948 e ratificada pelo Brasil na mesma data já estava
vedada a prática de submissão à tortura, bem como a tratamento ou castigo
cruel, desumano ou degradante.
No mesmo sentido, as Regras da ONU preveem
que, em nenhuma hipótese, devem as sanções disciplinares implicar em tortura ou
outra forma de tratamento ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes e proíbe
castigos corporais, redução da dieta ou água potável do preso, castigos
coletivos, instrumentos de imobilização e proibição de contato com a família
como sanções a infrações disciplinares, confinamento solitário prolongado e/ou
indefinido, dentre outros.
O próprio Código Penal reforçou expressamente
os direitos do preso, onde se lê:
“O preso conserva todos os direitos não
atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito
à sua integridade física e moral” (artigo 38).
Como não poderia ser diferente, a Constituição
Federal de 1988 recepcionou todo esse arcabouço legislativo condensando tais
princípios e dispositivos legais e assegurou o respeito à integridade física e
moral dos presos, além do repúdio à prática do crime de tortura (comando
reforçado pela Lei Federal nº 9.455/97).
A Lei de Execução Penal também previu uma
série de direitos do preso e regras de disciplina, tendo vedado expressamente
as sanções coletivas (arts. 3º e 45). Conforme explica Mirabete [4], a pretensão era abolir:
“O arbítrio existente na aplicação do sistema
disciplinar com a introdução de disposições precisas quanto às faltas e às
sanções correspondentes no lugar de uma regulamentação vaga e quase sempre
arbitrária.”
Porém, tal afirmativa ainda não se efetivou na
medida em que agentes penitenciários usam da mais pura arbitrariedade e
tirania, amparados em meras resoluções que impõem disciplinas e prevê o uso
desmedido da força.
Se as faltas disciplinares levam a sanções
(limitativas dos direitos do preso ou condenado), ambas devem estar previstas
na lei e não em regulamentos, justamente o contrário do que fez o governo do
Estado de SP que, na ausência de lei estadual, criou faltas disciplinares (além
daquelas já previstas na Lei de Execução Penal) por meio da Resolução SAP nº
144/2010 que instituiu o regimento interno dos presídios.
Isto significa que as faltas disciplinares de
natureza média e de natureza leve ocasionalmente atribuídas aos encarcerados
sob custódia do estado não possuem validade jurídica, tratando-se de manifesta
ordem ilegal que portanto não devem ser seguidas e tampouco passíveis de
sanção. A Lei de Execução Penal também prevê o exercício do direito de defesa
da pessoa presa acusada do cometimento de falta disciplinar, com decisão
motivada, devendo ser aberto um procedimento interno para a sua apuração –
direito que nunca se teve notícia.
O resultado prático acerca dessa política
ditatorial e fascista é chocante: chama-se o GIR para “disciplinar” e por ordem
na unidade prisional, onde o acontecimento mais trivial fatalmente será rotulado
como um ato de indisciplina passível de sanções e castigos.
A mesma prática criminosa também é dirigida às
mulheres encarceradas conforme se constata em relatório de
visita da Penitenciária Feminina de Santana elaborado por
Equipe do MNPCT [5]. Assim como
nas prisões masculinas, aqui se traz apenas um exemplo do que é regra no
sistema prisional paulista (e quiçá brasileiro): submissão das pessoas privadas
de liberdade a sessões constantes de humilhação, agressão e tortura. Segundo o
relatório, em reprimenda a uma festa comemorativa de aniversário do PCC houve
ação imediata do GIR, que adentrou nas dependências da penitenciária feminina e
passou a desferir socos, pontapés e ofensas verbais às mulheres.
Também há relatos de ameaças de morte, presas
arrastadas pelos cabelos, presas forçadas a levantarem as blusas sob pena de
golpes com cassetetes, agressões, atiçamento de cães para atacarem as presas,
imobilização das presas sob a mira de cães, quebra de pertences das presas e
lançamento de bombas de gás lacrimogêneo. E segue o relato: durante toda a ação
do GIR, presas ficaram sem acesso a água e sem alimentação. Durante o
procedimento de revista, presas tiveram sua alimentação estragada pelos agentes
do GIR, os quais contaminaram os alimentos com água sanitária e sabão.
As mulheres encarceradas relatam ainda que nem
todas teriam participado da festa, e segundo elas, isto explicaria a injustiça
dessas ações. Constatou-se que houve punição coletiva imediata e severa, sem a
instauração de procedimento interno no que se refere às devidas apurações
legais. Após tais ocorrências também foi imposta a proibição dos contatos e
visitas familiares às mulheres encarceradas. Também restou evidenciado que
nenhum agente do GIR possuía identificação nos uniformes.
Apesar de tanta ilegalidade e descalabro,
tramita no Estado de São Paulo um projeto de lei (PL nº 897/2014) de autoria
da deputada estadual Telma de Souza (PT-SP) que prevê regras a serem seguidas
quando da ação dos agentes do GIR (e/ou CIR) perante qualquer unidade prisional
do Estado (mas não estabelece quais seriam as hipóteses de atuação do grupo).
Tal projeto determina a prévia comunicação da intervenção do GIR às autoridades
competentes, a obrigatoriedade de registro de audiovisual das operações de
intervenção, a confecção de relatório e envio do material colhido às
autoridades, bem como a imediata responsabilização penal e administrativa dos
agentes públicos infratores.
Sabe-se que a transparência das instituições
públicas – e aqui se incluem as unidades prisionais – é princípio
constitucionalmente assegurado e medidas como as previstas no referido PL são
valiosas para se coibir desvios ou abusos individuais já que atualmente não se
faz nenhum tipo de controle das ações do GIR, daí porque tamanha selvageria.
Parece-nos que a permanência do GIR nas
prisões só deve continuar se medidas como estas forem urgentemente adotadas,
possibilitando uma completa remodelação ou reestruturação do GIR a fim de que
se submeta à lei e ao sistema jurídico protetivo de direitos humanos. Assim,
para além do que dispõe o PL 897/2014, é fundamental o estabelecimento de
hipóteses legais taxativas para ação do GIR cuja inobservância evidenciaria
desvio de finalidade.
A saída parece simples: ou se promovem
mudanças substanciais no GIR de modo a adequá-lo ou submetê-lo definitivamente
ao Estado de Direito ou o GIR deve ser imediatamente abolido das unidades
prisionais. Se tudo permanecer como está não haverá a mínima possibilidade
concreta de fiscalização e atribuição de responsabilidades legais aos agentes penitenciários
e a população carcerária continuará a ser barbaramente violentada. Instituições
compromissadas com a democracia precisam agir de modo a romper esse ciclo
vicioso de violência e morte.
A previsão de mediação, prevenção ou qualquer
outro mecanismo alternativo ao uso da força na solução de conflitos é regra que
precisa ser colocada em prática sempre que possível nas unidades prisionais,
seja pelo GIR após sua necessária reconfiguração, seja por outros agentes
penitenciários devidamente treinados sob a ótica legal humanista. Aliás, se
considerarmos que um potencial causador de rebelião é o sistemático descaso ou
desrespeito aos direitos (básicos) humanos tais como o direito à alimentação sem
vestígio de sabão, terra, caco de vidro etc., direito à higiene, direito aos
serviços de saúde, direito à acomodação adequada, dentre outros, evidente que a
observância desses mesmos direitos pelos agentes do Estado certamente seria
capaz de evitar, senão extirpar, conflitos de grande magnitude prescindindo-se
até mesmo de tamanho aparato repressivo como o GIR.
Apesar da primeira necessidade de se afastar
agentes penitenciários infratores, como já foi realizado
pontualmente pela Defensoria Pública do Estado de SP, a exemplo do
ocorrido na Penitenciária 2 de Potim em 2014, tal medida não se mostra
suficiente vez que não resolve a grandeza do problema por não atacá-lo pela
raiz. Tampouco soluciona o afastamento do diretor do estabelecimento prisional.
Tanto é assim que recentemente foi noticiado pelo Ponte
Jornalismo que a Penitenciária 1, também de Potim, estava há dias sob
intervenção do GIR sem que os familiares dos presos tivessem notícias e sem que
advogado pudesse entrar. É preciso o enfretamento definitivo dessas questões
pelas instituições democráticas e ir além para um avanço progressista.
A propósito, traçando um paralelo com a ação
civil pública ajuizada em 2014 pela Defensoria Pública de SP contra o governo
do estado onde se pretende a regulamentação para atuação da PM em
manifestações públicas, tais como a restrição máxima ao uso de bala
de borracha (uso exclusivo para afastar grave risco de morte), a total abstenção
de bombas de gás lacrimogêneo em locais fechados, a identificação (e de modo
visível) dos policiais, a presença de um negociador civil responsável por
estabelecer uma ponte de diálogo entre manifestantes e policiais, é
perfeitamente defensável que o Estado também seja instado a se manifestar
acerca da atual situação do GIR nas prisões paulistas, com vistas a sua
extinção ou ao menos uma reformulação.
É absolutamente inconcebível a atuação do GIR
ou de qualquer agente penitenciário que se utiliza da força como regra, de
forma desmedida e indiscriminada, em semelhante procedimento da tropa de choque
da PM nas manifestações de rua, com o uso de cassetetes, balas de borracha,
bombas de gás, sobretudo em local fechado como o do cárcere.
Esse modelo que temos hoje nas prisões
paulistas (e noutros estados) é absolutamente ignóbil num pretenso Estado de
Direito, no qual agentes do GIR permanecem camuflados no grupo sem que haja
qualquer responsabilização, seja por impossibilidade de identificação do agente
infrator (agentes que atuam encapuzados e sem identificação), seja por ausência
de controle e fiscalização, seja por acobertamento criminoso da direção da
unidade prisional.
Garantir a aplicação das Regras Mínimas para o
Tratamento de Presos como reforça a própria Constituição do Estado de SP, a
efetiva implantação das Regras de Bangkok, bem como as demais Convenções e
Tratados Internacionais correlatos (princípio da prevalência da norma mais
benéfica e protetiva aos direitos
humanos) e extinguir o GIR ou reformá-lo completamente a fim de que se enquadre
no sistema jurídico vigente possibilitando-se o desenvolvimento de mecanismos
eficazes de garantia de direitos, controle, fiscalização e responsabilização
legal de agentes penitenciários infratores certamente seriam importantíssimos
passos rumo à efetivação da dignidade da pessoa humana encarcerada, freando-se
o terrível processo de desumanização no cárcere.